"O Tesouro" de Eça de Queiroz (Eça de Queirós, na grafia moderna) foi publicado originalmente em 1894 na "Gazeta de Notícias". Eça de Queiroz (1845-1900) é um dos mais importantes escritores portugueses.
Testo
O TESOIRO
I
Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guannes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.
Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levára vidraça e telha, passavam êles as tardes dêsse inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sôbre as lages da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como êles, roíam{124} as traves da mangedoura. E a miséria tornára êstes senhores mais bravios que lôbos.
Ora, na primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pègadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, emquanto as três éguas pastavam a relva nova de abril,—os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um vélho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma tôrre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sôbre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de oiro!
No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no oiro, estalaram a rir, num riso de tam larga rajada, que as fôlhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tam desabrida que Guannes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesoiro, ou viesse de Deus ou do demónio, pertencia aos três, e entre êles se{125} repartiria, rígidamente, pesando-se o oiro em balanças. ¿Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tam cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso êle entendia que o mano Guannes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já oiro na bolsinha, a comprar três alforges de coiro, três maquias de cevada, três empadões de carne, e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para êles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o oiro nos alforges, e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.
—Bem tramado!—gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até à fivela do cinturão.
Mas Guannes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:
—Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!
—Tambêm eu quero a minha, mil raios!—rugiu logo Rostabal.{126}
Rui sorriu. De-certo, de-certo! A cada dono do oiro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com fôrça. Imediatamente Guannes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:
Olé! olé!
Sale la crus de la iglesia,
Vestida de negro luto...
II
Na clareira, em frente à moita que encobria o tesoiro (e que os três tinham desbastado a cutiladas) um fio de água, brotando entre rochas, caía sôbre uma vasta lage escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um vélho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas tosavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões de oiro. Pela ramaria{127} andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o sol, bocejava com fome.
Então Rui, que tirára o sombrero e lhe cofiava as vélhas plumas rôxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guannes, nessa manhã, não quisera descer com êles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guannes tivesse quedado em Medranhos, só êles dois teriam descoberto o cofre, e só entre êles dois se dividiria o oiro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guannes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.
—Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guannes, passando aqui sòzinho, tivesse achado êste oiro, não dividia comnosco, Rostabal!
O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:
—Não, mil raios! Guannes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!
—Vês tu?—gritou Rui, resplandecendo.
Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idea, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.
—E para quê?—prosseguia Rui,—¿Para{128} que lhe serve todo o oiro que nos leva? ¿Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até às outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos, como compete, a quem é, como tu, o mais vélho dos de Medranhos...
—Pois que morra, e morra hoje!—bradou Rostabal.
—Queres?
Vivamente, Rui agarrára o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guannes partira cantando:
—Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guannes te tratava de cerdo e de torpe, por não saberes a letra nem os numeros.
—Malvado!
—Vem!
Foram. Ambos se emboscaram por trás dum silvado, que dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal assolapado na vala, tinha já a espada{129} nua. Um vento leve arripiou na encosta as fôlhas dos álamos—e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de córvos passou sôbre êles, grasnando. E Rostabal, que lhes seguira o vôo, recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e no vinho que o outro trazia nos alforges.
Emfim! Àlerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:
Olé! olé!
Sale la crus de la iglesia
Toda vestida de negro...
Rui murmurou:—«Na ilharga! Mal que passe!» O chouto da égua bateu o cascalho, uma pluma num sombrero vermelhejou por sôbre a ponta das silvas.
Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada;—e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guannes, quando ao rumor, bruscamente, êle se virára na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sôbre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua:—Rostabal, caíndo sôbre Guannes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela fôlha como um punhal, no peito e na garganta.{130}
—A chave!—gritou Rui.
E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda—Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arripiado com o sabor de sangue que lhe espirrára para a bôca; Rui, atrás, puxando desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela, não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.
Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada:—e foi correndo sôbre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não doirava as fôlhas. Rostabal arremessára para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sôbre a lage escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.
A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforges novos que Guannes comprára em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então, Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na relva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolgava, com as longas barbas pingando. E, serenamente, como se pregasse uma estaca num{131} canteiro, enterrou a fôlha toda no largo dorso dobrado, certeira sôbre o coração.
Rostabal caíu sôbre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua vélha escarcela de coiro ficára entalada sob a côxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo—e um sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.
III
Agora eram dêle, só dêle, as três chaves do cofre!... E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o oiro metido nos alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesoiro! E quando ali na fonte, e alêm rente aos silvados, só restassem, sob as neves de dezembro, alguns ossos sem nome, êle seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido, mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos, como? Como devem morrer os de Medranhos—a pelejar contra o Turco!
Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado{132} de dobrões, que fez retinir sôbre as pedras. Que puro oiro, de fino quilate! E era o seu oiro! Depois foi examinar a capacidade dos alforges—e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe sêco. E há quanto tempo não provava capão!
Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas, a ave loura, que rescendia, e o vinho côr de ámbar! Ah! Guannes fôra bom mordomo—nem esquecera azeitonas. ¿Mas, porque trouxera êle, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvemsinhas côr de rosa. Para alêm, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.
Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela côr vélha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à bôca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bemdito, que tam prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia—destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesoiro, requeria firmeza e acêrto. Estendido sôbre o{133} cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.
De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os alforges. Já, entre os troncos, a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de oiro... Mas oscilou, largando os dobrões que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. ¿Que é, D. Rui? Raios de Deus! era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera dentro, lhe subia até às guelas. Já rasgára o gibão, atirava os passos incertos, e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas de um suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:
—Socorro! Alguêm! Guannes! Rostabal!
Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava—sentia os ossos a estalarem como as traves duma casa em fogo.
Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sôbre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que êle, entre uivos, procurava o fio de água, que recebia sôbre os olhos, pelos cabelos.{134} Mas a água mais o queimava, como se fôsse um metal derretido. Recuou, caíu para cima da relva que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente, esbogalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse emfim a traição, todo o horror:
—É veneno!
Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guannes, apenas chegára a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao vélho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a êle, a êle sómente, dono de todo o tesoiro.
Anoiteceu. Dois corvos de entre o bando que grasnava, alêm nos silvados, já tinham pousado sôbre o corpo de Guannes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva negra, toda a face de Rui se tornára negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.
O tesoiro ainda lá está, na mata de Roquelanes.{135}
Fonte: https://www.gutenberg.org/files/31347/31347-h/31347-h.htm
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