Isto é o sabor do passado por Lídia Jorge

 


Carminha Rosa semierguida na cama de ferro, de quatro pernas, penso quel chá de erva-cidreira. Un caldo quente e cheiroso, que lhe empurrasse a queimadura bucho para o fundo das vísceras. E lhe adoçasse a lingua. E dispôs-se a sair da cama. No entanto, com um pé no tapete do chão, Carminha Rosa percebeu que a indisposição não lhe vinha do estômago, mas de qualquer outra miudeza localizada na borda do coração. Ou mesmo dentro. Dentro do motor. Pensou. Era no meio da caixa do corpo. Apertado como por tenaz em brasa, ou sapatada de ferradura. Isto é o sabor do passado. Disse. Isto é uma espécie de lembrança de coisa vivida noutros tempos. É alguém a chamar-me. Não é azia, nem merece erva-cidreira. Isto é alguém a chamar-me de santa. Santa Maria Goreti, rainha da pureza e escrava do pecado alheio. 

Publicat també al grup de Facebook Prosa e Poesia Portuguesa

© O dia dos prodígios, Lídia Jorge

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