Natasha | Rios Sem Discurso | João Cabral de Melo Neto


Rios sem Discurso

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma;
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

*

O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

João Cabral de Melo Neto, in 'Serial e Antes, A Educação pela Pedra e Depois, Rio de Janeiro, 1997' 

Font: https://www.citador.pt/poemas/rios-sem-discurso-joao-cabral-de-melo-neto

Vídeo de 2015 de 1.49 minuts

Link: https://www.youtube.com/watch?v=4ndCReWBbUM&t=9s

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